Em comercial da marca de tempero, o nosso ícone cultural foi desrespeitado e aqui estamos para dizer: respeita meu acarajé

Nem só da herança europeia da busca por especiarias o nosso país foi moldado, não é mesmo? Isso é mais do que verdade quando se trata de culinária baiana.

Após a chegada dos portugueses, com o passar dos anos, o recém-criado Brasil, passou a receber povos de outras nações, aqui trazidos como escravizados. Os novos habitantes trouxeram consigo uma rica cultura, variada gastronomia, grandes saberes culinários e manejo de agricultura que também influenciaram muito na formação do nosso país.

Os povos africanos trazidos até aqui, enriqueceram de tal forma a culinária brasileira que a transformaram completamente, dando cara, gosto e personalidade a um país inteiro. As riquezas imateriais trazidas pelos povos escravizados são tantas, tão diversas e tão importantes que são o verdadeiro tesouro atual da cultura baiana e, portanto, brasileira. Afinal de contas, não se pode falar em Bahia sem mencionar a sua maravilhosa culinária.

Entretanto, a culinária de matriz africana não tem, obviamente, a mesma origem da portuguesa. Para mencionar uma das diferenças cruciais, enquanto os portugueses e seus descendentes tinham como hábito temperar excessivamente a comida com especiarias secas vindas das Índias orientais, a culinária dos africanos e seus descendentes opta por um caminho de uso de ingredientes frescos e locais, especialmente em relação aos temperos verdes.

Com essa origem completamente distinta, a culinária de matriz africana encontrou na Bahia o seu terreno fértil, fazendo nascer o hoje já mundialmente famoso acarajé. Atualmente, o ofício da Baiana de Acarajé é considerado um bem cultural de natureza imaterial pelo IPHAN, sendo uma prática tradicional de produção e venda do nosso acarajé. É tipicamente vendido em um tabuleiro e está profundamente ligado ao culto dos orixás. Ele é preparado a partir de feijão fradinho, moído de maneira artesanal em um pilão de pedra (pedra de acarajé), temperado e posteriormente frito no azeite de dendê.

Em sua receita original, o acarajé é feito com feijão fradinho, cebola e sal. Após frito no azeite de dendê, o acarajé ganha o recheio com vatapá, salada de tomates frescos, camarão seco defumado e molho de pimenta – artesanal e pastosa, e não em pó.

Ele agrada ao paladar de quem o saboreia, especialmente pela sua crocância e suculência. Essa receita tem origens no Golfo do Benim, na África Ocidental e se mantém tradicional há centenas de anos.

Junto a isso, mais especialmente em Salvador, até hoje, o acarajé é tipicamente vendido, na imensa maioria dos tabuleiros, por mulheres negras, que herdaram e são as guardiãs da prática tradicional. Em nome dessa tradição, essas mulheres preparam e comercializam o prato vestidas com a indumentária própria das baianas, que também é característica dos ritos do candomblé, sendo composta por turbantes, colares de contas, saias e panos.

As baianas de acarajé, dessa forma, preservam a receita e os modos de preparação há séculos, mantendo viva a tradição e a identidade cultural da Bahia até os dias atuais. Além desse valor inestimável, o acarajé é fonte de sustento dessas mulheres.

O acarajé, portanto, é mais do que uma comida gostosa e reverenciada. Ele tem herança, antepassados, riqueza cultural, representa o sustento de muitas pessoas e é parte da cultura brasileira.

E dada toda a sua riqueza histórica e cultural, o Brasil e, em especial a Bahia tem o dever e a responsabilidade de proteger o acarajé.

Vale à pena ir à guerra por ele. E por que faríamos isso? Por causa de tempero? Sim, por causa de tempero. Em razão dele, estamos dispostos a abrir um debate sobre o acarajé.

Respeita Meu Acarajé: E o que motivou tudo isso?

Isso porque, recentemente, um comercial de uma famosa marca de temperos nacional, a Kitano, resolveu colocar o acarajé em sua publicidade. Entretanto, o fez de forma destrambelhada, para dizer o mínimo e, o que poderia ser uma linda homenagem a uma comida de sabor ancestral, virou um desacerto. Erraram na receita.

Na publicidade, resumidamente, o apresentador Rodrigo Hilbert, após chamar à atenção para o fato de que os temperos do Brasil são muitos e diversificados, pede um acarajé a um homem branco de boina vermelha, que o serve de uma espécie de stand de alumínio em uma feira, retirando-o de uma caçarola amarela e o finaliza com uma grande quantidade de pimenta-do-reino por cima.

Parece um verdadeiro jogo dos sete erros e está tudo em desconformidade com os modos tradicionais e preservados de preparar e de servir o acarajé. Isso é o que vamos provar: Respeita meu acarajé.

O jogo dos 7 Erros da Propaganda da Marca de Tempero

https://www.youtube.com/watch?v=asdo1V9U5Bw

Primeiro Erro

De início, o acarajé, como já visto, é tradicionalmente vendido por mulheres negras, majoritariamente oriundas do candomblé. A atividade profissional sempre foi realizada por elas, em exemplo de superação e força femininos e como já mencionamos antes, é um património imaterial. Ao contrário disso, no comercial, quem o vende é um homem branco.

Segundo Erro

Junto a isso, para vender o acarajé, as baianas se vestem com uma indumentária própria e característica decorrente de sua religiosidade do candomblé. Elas não usam boina vermelha, mas sim turbantes. Não usam avental e camiseta, como no comercial, mas sim lindos vestidos de variadas cores.

Curiosamente, há uma semelhança entre aquele que serve o acarajé, no comercial, e o personagem do videogame Super-Mario Bros, chapéu vermelho, avental azul e simpatia, o que torna toda a cena muito curiosa, anormal e fora de contexto. Não se sabe por que, ao assistir o vídeo, um personagem de vídeo game vende acarajé em uma feira de verduras. Talvez seja um mundo desconhecido, resultante de algum easter egg nunca antes revelado.

Terceiro Erro

Além disso, o acarajé é tradicionalmente vendido em tabuleiros espalhados em locais públicos, nos quais os acompanhamentos estão lindamente dispostos. Ao visitar um tabuleiro tradicional, é possível ver o vatapá, o camarão, a salada e outras delícias como cocada, caruru, passarinha, bolinho de estudante e abará, todos dispostos lado a lado e em farta quantidade. Infelizmente, não é isso que se vê no comercial.

Quarto Erro

Em nome da tradição, o acarajé é tipicamente frito em azeite de dendê em um tacho. Lamentavelmente, no vídeo, há uma caçalora amarela e nem sinal do tradicional e perfumado tacho de dendê fumegante e hipnotizante. Passar ao lado de uma baiana de acarajé de verdade é ter a certeza de sentir esse delicioso aroma. A fumaça perfumada, tristemente, não está lá representada.

Quinto Erro

Pode até parecer preciosismo, mas, no vídeo também falta encontrar a baiana de acarajé que, enquanto espera o cliente, bate a massa branca e cremosa com uma enorme colher de pau, com a panela entre as pernas, para garantir que esse fique fofinho e crocante. Isso porque, os que já visitaram o rico tabuleiro, provavelmente já se depararam com a icônica cena da baiana que, esperando pelos clientes, passa a bater a massa, garantindo que os próximos acarajés estejam aerados, fofinhos e devidamente prontos para serem fritos. Essa prática também não está no vídeo, sendo que, sem ela, não se sabe nem onde, nem quando, nem como essa massa foi batida.

Sexto Erro

Para finalizar a sequência, o vendedor de boina informa que tem um segredo no seu acarajé. O seu segredo é colocar pimenta do reino em pó por cima do acarajé montado e pronto para comer, em grande quantidade. O acarajé fica polvilhado de pimenta do reino em pó para horror de todos. Essa é uma prática que foge completamente à tradição do acarajé, já que a pimenta utilizada no recheio de acarajé vai, tradicionalmente, na parte interna desse, como primeiro recheio do mesmo, após a sua abertura.

Não se usa, jamais, pimenta do reino em pó, uma vez que a famosa pimenta de baiana, picante como só ela sabe ser, é em geral, líquida, meio pastosa e densa, jamais em pó e muito menos polvilhada em grande quantidade por cima do acarajé pronto. Comer o acarajé preparado na propaganda é intragável e não precisamos nem provar para saber disso.

Sétimo Erro

Tempero não é tudo igual. Esse é o slogan da campanha que para fazer valer a sua premissa prefere desrespeitar o nosso acarajé. É como se uma marca de abacaxi em caldas, para promover o seu produto na Itália fizesse um comercial, com uma pizza “havaiana”, colocando abacaxi no recheio da pizza. E lá isso seria levado à sério, acreditem.

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Conclusão: Respeita Meu Acarajé

É de arder os olhos assistir a tamanha atrocidade com o delicioso acarajé. É como jogar pimenta na cara de quem mantém a tradição centenária, dos seus apreciadores e de todos aqueles que mantém a cultura viva. É desrespeitar um saber ancestral, vindo do continente africano e tão caro a todos os baianos.

É porque estamos dispostos a defender aqui os modos tradicionais de preparo e venda do acarajé, apontando os erros e abrindo o debate sobre o assunto que lamentamos muito tamanha imprecisão ao retratar uma comida tão importante para o Brasil, integrante de sua cultura e saber imaterial. Respeita meu acarajé!

Se a Kitano convidou o Rodrigo Hilbert, como estagiário, para aprender sobre ervas e especiarias, nós o convidamos para aprender um pouco de Bahia e nossas tradições.

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O Jogo dos 7 Erros – Foto: Reprodução do comercial / Youtube

#respeitameuacarajé

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