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Vinhos de verão: beber o clima, escutar o corpo
Em Salvador, o verão não é apenas uma estação, é um modo de existir. O calor define os horários, os encontros, os pratos e, inevitavelmente, o que escolhemos colocar na taça. É nesse cenário que os vinhos de verão ganham outro sentido: não são apenas rótulos para beber gelados, mas escolhas que respeitam o corpo, o clima e o tempo.
Na coluna desta semana, Carol Souzah propõe uma escuta sensível da estação. Mais do que sugerir vinhos brancos, espumantes ou tintos leves, ela convida o leitor a repensar o porquê de ainda insistirmos em potências alcoólicas em pleno calor baiano. Com olhar crítico, toque de ironia e muita elegância sensorial, Carol desmonta mitos, provoca o paladar e revela como o preconceito contra vinhos leves — muitas vezes atravessado por machismo — nos afasta de experiências mais honestas e prazerosas.
Um texto que refresca ideias, inspira escolhas e reafirma: o bom vinho de verão é aquele que acolhe por dentro e refresca por fora.

Vinhos de verão, quando a taça escuta o clima
Em Salvador, o verão dita o ritmo da vida. O calor molda os horários, os encontros, o jeito de ocupar a cidade e, inevitavelmente, o que colocamos na taça. Quando o vinho entende esse clima, entra nesse diálogo não como imposição, mas como extensão do ambiente, um vinho que refresca, acolhe e convida à permanência, sem excesso e sem esforço.
Para quem quer acertar no vinho de verão, algumas escolhas funcionam quase como um mapa seguro. Sauvignon Blanc seguem imbatíveis nesse clima, dos chilenos de regiões mais frias, como o Caliterra Reserva, aos rótulos vibrantes de Marlborough, na Nova Zelândia, como o Marlborough Sun Sauvignon Blanc, cheios de acidez, fruta fresca e aquela sensação quase elétrica que refresca imediatamente. Vale olhar também para os brasileiros, que têm surpreendido muito, especialmente nos espumantes, com rótulos precisos, leves e cheios de frescor. Um ótimo exemplo é o Espumante Bebber Nature, com 12 meses, elaborado a partir de Chardonnay e Riesling Itálico, um espumante brasileiro de acidez firme, aromas vibrantes e grande precisão. Chardonnay sem madeira, tanto do Chile quanto do Brasil, também funcionam muito bem com peixes, saladas e frutos do mar. Entre os rosés, os estilos mais claros e secos continuam sendo apostas certeiras. E nos tintos, a dica é escolher versões mais leves e pouco extraídas, como Pinot Noir, Garnacha ou Cinsault, inclusive brasileiros e chilenos, sempre com a possibilidade de servir levemente refrescados. São vinhos pensados para beber com prazer, sem esforço, respeitando o clima, o ritmo e a leveza que o verão pede em Salvador.
Trazer outras referências para Salvador deveria ser quase natural. Aqui, os vinhos mais frescos combinam com peixe grelhado, com uma moqueca mais leve, com petiscos de praia, com frutas e com mesas compartilhadas. Rosés claros e secos, espumantes brut ou nature entram com facilidade nesse cenário. Inclusive, um bom espumante brut ou até um vinho laranja conseguem dialogar muito bem com a moqueca e com o dendê, equilibrando gordura, intensidade e especiarias. Um exemplo interessante é o vinho laranja espanhol biodinâmico 20000 Léguas, que mostra como estrutura, textura e frescor podem caminhar juntos mesmo diante de pratos intensos. São vinhos que combinam com gelo no balde, com vinho na praia ou à beira da piscina, com roupa leve, corpo solto e a liberdade que o calor impõe, sem rigidez.
No entanto, confesso que existe algo que ainda observo bastante em Salvador, mesmo depois de todos os meus verões vividos aqui. Vejo muita gente insistindo em beber, nos dias mais ensolarados do ano, vinhos tintos super potentes, Malbecs, Cabernet Sauvignon e Petit Verdot extremamente extraídos, alcoólicos, com longa passagem por barrica, como se o clima não tivesse mudado e o corpo não estivesse pedindo outra coisa. Existe uma certa resistência em aceitar que o vinho também acompanha a estação. Não digo para não beber esses vinhos durante o verão, mas ampliar as possibilidades nessa época do ano. Trocar um tinto pesado por um Pinot Noir bem feito, como o Bourgogne Origines do Albert Bichot, mais leve e fresco, não é perda de status nem de prazer, é inteligência sensorial. Já levei um Pinot para um jantar e ouvi, sem saberem que o vinho era meu, comentários do tipo “quem trouxe esse vinho ruim?” seguido de “só pode ter sido mulher”. Isso diz muito. O vinho leve ainda sofre preconceito, e muitas vezes esse preconceito vem carregado de machismo.
O vinho, muitas vezes, acaba sendo usado como um símbolo de afirmação, quase como uma extensão de status. Assim como carros e motos maiores, mais caros ou mais potentes, alguns homens recorrem a vinhos excessivamente fortes, alcoólicos e marcados pela madeira para reforçar uma ideia de poder, gosto e autoridade. Não por acaso, ainda existem homens que dizem entender de vinho, mas que só bebem tinto, como se limitar o repertório fosse sinal de conhecimento. Nesse jogo, a potência passa a ser confundida com valor, e tudo que é delicado, leve ou sutil acaba sendo desqualificado, não por falta de qualidade, mas por carregar um preconceito antigo e silencioso. Enquanto isso, seguem bebendo contra o clima, contra o corpo e contra a própria experiência que o verão poderia oferecer.
Talvez o maior aprendizado do verão seja esse: vinho não precisa ser denso para ser profundo, nem complexo para ser interessante. Às vezes, ele só precisa ser honesto, bem feito e refrescante. Um vinho que respeita o calor, o corpo e o tempo.
No fim das contas, escolher bons brancos, espumantes e rosés é um exercício de escuta. Escutar o clima, o corpo e o lugar. Salvador pede frescor, ritmo e menos peso, e o vinho, quando respeita essa lógica, se transforma em prazer verdadeiro. Porque no calor, o vinho bom é aquele que refresca por fora e acolhe por dentro.

Sobre Linha Editorial e a Carol Souzah
Carol Souzah é sommelière, jornalista e nova colunista do Muito Gourmet.
A sommelière abordará inovações no mundo dos vinhos, curiosidades, harmonizações, aspectos socioeconômicos, sustentabilidade, ética na produção e muitas dicas.
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