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Em novembro do ano passado, Salvador se despediu de um dos espaços mais queridos por quem ama vinho com alma, música boa e encontros de verdade. O Terroir Bar de Vinhos encerrou suas atividades, mas não sua história, nem seu impacto na cena enogastronômica da cidade.
Um ano depois, sua fundadora, a sommelière, jornalista, consultora e nossa colunista Carol Souzah, revisita esse capítulo com a delicadeza e a profundidade de quem viveu intensamente cada noite, cada taça, cada desafio.
Nesta coluna, Carol compartilha não apenas memórias, mas também uma reflexão generosa sobre os novos hábitos de consumo, o papel da comunicação no setor e os caminhos possíveis para o futuro dos bares e restaurantes. Um texto para ser lido com calma, de preferência, com uma boa taça ao lado.



Um ano sem a Terroir, uma vida inteira de memórias: reflexões sobre o vinho e novos hábitos de vida e consumo
Um ano depois de fechar as portas, ainda sinto que a entrada continua aberta na memória e na saudade, como uma casa que a gente já não habita, mas que permanece viva nas lembranças, nas conversas e nas histórias que ficaram. Foi em novembro do ano passado que o Terroir Bar de Vinhos, um projeto que ocupou um espaço tão bonito na cena enogastronômica de Salvador, encerrou seu ciclo. Foram anos intensos e cheios de vida, com uma curadoria de vinhos sustentáveis e naturais sempre em movimento: a cada quinze dias, novos rótulos, uvas raras, histórias diferentes para contar em taças novas. O jazz, o blues e a bossa nova embalavam as noites, o ambiente era íntimo e acolhedor, um ponto de encontro entre desconhecidos que viravam amigos e amigos que se tornavam parte da casa. O Terroir era isso, uma casa viva, pulsante, que respirava vinho, música e afeto.
Hoje, revisito esse espaço que já não existe fisicamente, mas que segue vivo nas lembranças e nas marcas que deixou em mim. A Adega Terroir, como muitos ainda a chamam, foi meu grande amor e também meu maior aprendizado. Foi casa, palco, laboratório e espelho. Criá-la foi um gesto de coragem; mantê-la de pé, um exercício diário de fé. Por trás das noites cheias e dos brindes animados havia também as incertezas, as ansiedades, o medo constante de não dar conta de tudo, de segurar as pontas por mais uma semana, um mês. Vieram o cansaço, a exaustão e um burnout que talvez não tenha se curado completamente. Escrevo isso com sinceridade, porque sei que muitos que vivem da gastronomia, da arte e do vinho podem se reconhecer. E ter um bar de vinhos nessa conjuntura foi tão engrandecedor quanto desafiador. Aprendi a lidar com o imprevisível, com as mudanças de humor do mercado e do público, com a rotina que, por mais bela que fosse, também me cobrava um preço emocional alto.
Com o distanciamento do tempo, percebo que o Terroir nasceu em meio a um divisor de águas: a pandemia. Ela mudou tudo, não apenas a forma como consumimos, mas também a maneira como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos com o tempo, com o lazer e com o vinho. O Terroir fez parte de um grupo de bares e restaurantes que não resistiram às transformações econômicas e aos novos hábitos de consumo que vieram depois. O que antes era um ritual coletivo, para muitos, se tornou um ritual privado. Sair para beber vinho deixou de ser rotina e passou a ser acontecimento. A compra online ganhou força, o consumo em casa cresceu e, aos poucos, muitos encontros que antes enchiam os salões se tornaram mais espaçados.
Há poucas semanas, uma notícia me fez reviver muitas lembranças: a Enoteca Saint VinSaint, em São Paulo, que sempre foi uma grande inspiração para mim na época da Terroir, anunciou o encerramento de suas atividades. Por vinte anos, o espaço comandado por Lis Cereja foi uma das principais referências em vinhos naturais no Brasil. A notícia, que ecoou em todo o país, vai muito além do fechamento de uma casa, é o reflexo de um tempo que mudou. No texto em que se despede do espaço, Lis fala sobre o desafio de sustentar uma filosofia de pequenos produtores, vinhos orgânicos e biodinâmicos dentro de uma estrutura de restaurante que exigia muito mais do que paixão. Fechar, nesse contexto, não é desistir, é reconhecer a necessidade de transformação.
Percebo, nesses anos, que mesmo entre as grandes casas que seguem abertas, salvo algumas boas exceções, algo mudou. O movimento de outrora, aquele fluxo constante de mesas cheias e taças tilintando a cada noite, já não é mais o mesmo. Os salões continuam belos, os rótulos seguem excelentes, mas o ritmo é outro, mais espaçado, mais seletivo, mais silencioso. Não se trata de falta de interesse, e sim de um novo comportamento coletivo. A comodidade de comprar online e beber em casa alterou o eixo do prazer enogastronômico. O que antes era uma experiência social passou a ser um momento mais íntimo, reservado. A importância que damos ao tempo também mudou. O tempo se tornou um bem escasso, e sair para beber exige mais justificativa emocional do que antes. Há o trânsito, o cansaço do dia, as agendas que nunca se alinham entre os amigos, e a sensação constante de falta de pausa. O lazer precisa valer o esforço.
Além disso, o poder de compra diminuiu, e com ele, a frequência com que o vinho é celebrado fora de casa. Quem antes saía toda semana, hoje o faz uma vez por mês ou apenas em ocasiões especiais. O custo de vida aumentou, o lazer passou a ser planejado e o vinho, muitas vezes, virou um prazer reservado. Ainda assim, a busca por experiências autênticas e personalizadas segue crescendo, mas nem sempre se traduz em consumo presencial. Mesmo as casas mais consolidadas vivem um redesenho do público, com novos horários, dinâmicas e formas de se conectar.
E há outro fator que se impõe: a comunicação. Hoje, não basta que o restaurante ou o bar de vinhos sejam bons para prosperar. É preciso estar presente, ativo e criativo nas redes sociais. A vitrine mudou de lugar, e a comunicação passou a ser parte essencial da sobrevivência. Muitos estabelecimentos, especialmente os menores, enfrentam dificuldade nesse ponto, pois alguns não têm verba para investir em marketing digital nem equipe para criar conteúdo de qualidade constante. Mas o jogo não permite pausa. Quem não se adapta a esse modelo novo, e sem volta, acaba perdendo visibilidade, engajamento e, consequentemente, movimento. É um tal de precisar se reinventar o tempo todo que a palavra passou a me causar pavor. É um ciclo que exige energia, estratégia e presença: além de servir bem, é preciso comunicar, mostrar, criar desejo e manter o público conectado à marca o tempo todo para não ser esquecido.
Mesmo com todos os desafios que vivi, e mesmo com o fechamento, o legado do Terroir permanece. Ela deixou sementes que continuam florescendo: amigos que viraram comunidade, vinhos que despertaram descobertas, encontros que me ensinaram tanto. O formato pode ter mudado, mas a essência segue viva — esse desejo por conexão, por conversa, por taças que contam histórias e aproximam pessoas. Como sommelière, jornalista, consultora e educadora de vinhos, sinto que estamos entrando em uma nova fase do setor. E, no meu caso, o desafio agora é justamente esse: encontrar formatos que façam sentido para o tempo em que vivemos. Experiências menores, mais íntimas, itinerantes e híbridas, que toquem quem participa. Levar o encontro até o cliente, seja em casa, num restaurante parceiro ou num evento especial. Afinal, o vinho continua sendo sobre isso: sobre encontro, partilha e presença.
Um ano após o fechamento do Terroir, o balanço é de saudade, mas também de aprendizado e esperança. Que os bares e restaurantes, esses lugares que acolhem sonhos, encontros e memórias, encontrem fôlego, saúde financeira e também emocional para seus donos e equipes, que tantas vezes sofrem em silêncio. Que voltem a estar cheios de risadas, brindes e alegria. Que o vinho continue sendo um elo entre as pessoas, um convite à pausa e à presença. E aqui deixo meu agradecimento ao Terroir, aos amigos e clientes que seguem comigo até hoje no projeto Terroir Itinerante. Foi ela que me moldou como profissional, que me deu coragem, sensibilidade e experiência para tudo o que construo agora. O Terroir se foi como espaço físico, mas continua existindo nas memórias, nos vínculos e em cada taça que sigo compartilhando.

Sobre Linha Editorial e a Carol Souzah
Carol Souzah é sommelière, jornalista e nova colunista do Muito Gourmet.
A sommelière abordará inovações no mundo dos vinhos, curiosidades, harmonizações, aspectos socioeconômicos, sustentabilidade, ética na produção e muitas dicas.
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