O que você verá na matéria
A Casa Moreyra é mais do que um restaurante; é um portal. No momento em que você cruza os portões dessa mansão imaculadamente branca, algo muda. Ali, em San Isidro, um dos bairros mais elegantes de Lima, a história parece dançar com o presente. O que outrora foi uma casa colonial do século XVI agora é palco para a revolução gastronômica liderada por Gastón Acurio e Astrid Gutsche.
As primeiras impressões são de pura reverência. Um jardim cuidadosamente planejado, com lindas flores, uma horta com temperos locais como ají amarillo crescendo entre os caminhos de pedra e uma estufa que sussurra promessas de frescor.
A casa se divide em vários salões lindamente decorados, com um serviço primoroso e muito personalizado. Eles terminam em um lindo jardim, em uma área mais descontraída e cercada por varandas. O destaque maior deste espaço é uma imponente e tradicionalmente peruana, Árvore da Vida, de onde pendem presentes para um bom viver. O efeito em mim foi de pura contemplação e maravilhamento.
Ao lado da casa principal, uma pequena capela, um lembrete de que aquele lugar já testemunhou cerimônias sagradas. E, de certa forma, o que acontece ali dentro ainda é sagrado – só que agora o altar é uma mesa, e os fiéis são devotos do sabor.
Uma Jornada Guiada Pelo Inverno
O menu daquela noite, batizado de El Invierno, en Astrid y Gastón, parecia prometer introspecção e intensidade, como a própria estação.
Começamos com Los Hijitos de la Papa, uma ode ao ingrediente mais peruano de todos: a batata. Delicadamente trabalhada em várias formas e texturas, ela abria a noite como um poema gastronômico. Depois veio a Leche de Tigre de Alcachofa y Lenguado, onde o frescor do peixe e a suavidade da alcachofra criavam uma harmonização inesperada e sofisticada.
Mas o momento de maior surpresa veio com o Cuy Pekinés. Admito: cheguei ao Peru decidido a evitar este prato icônico de porquinho da Índia, não conseguia desvincular a comida do bichinho fofinho. Porém, ali, transformado em recheio de um taco de milho preto e saboroso, ele se tornou um dos grandes destaques da noite. Era como se o prato sussurrasse que a cozinha de Gastón Acurio não só celebra tradições, mas as reinventa.
Outro prato memorável foi o Aji Nikkei, uma fusão de Peru e Japão que entregou camadas de umami e um frescor inigualável. Sendo o Peru um dos destinos de migração japonesa significativa, essa fusão de culinárias tão ricas resulta em uma riquíssima soma. O prato não só unia culturas como demonstrava o poder transformador da gastronomia.
Uma Sinfonia de Sabores Profundos
Conforme o menu progredia, os pratos pareciam ganhar mais corpo e intensidade. O Sudado de Róbalo y Naranja Agria trouxe um caldo aromático que acariciava o paladar, enquanto o Ravioli de Lúcuma surpreendeu ao combinar a doçura discreta da fruta com o camarão de rio e um toque de café – um prato que evocava o inesperado em cada mordida.
O Canelón de Liebre, com seu recheio robusto e a delicadeza de um toque de chocolate e ají amarillo, foi um dos ápices da noite. E então veio o Pato con Rocoto y Butter Curry, um prato que, para mim, simboliza o inverno: profundo, acolhedor, e tão complexo quanto um bom livro que você não consegue largar.
O Desafio da Doçura
Depois de uma sequência tão impactante, as sobremesas chegaram com a difícil missão de manter o nível da experiência. O Sorbete de Hierbas fez bem seu papel: refrescante, com toques de ervas andinas e uma infusão de pisco, limpou o paladar com elegância. Mas foi na sequência que as coisas começaram a se perder.
A Castaña, com sua espuma de cúrcuma, nori e cocona, era bonita, parecia mais uma ideia do que um prato verdadeiramente realizado. E então veio o Soufflé de Loche. Apesar de tecnicamente impecável, ele simplesmente não tinha alma. Era como uma nota fora do ritmo em uma melodia perfeita. Não nos conectamos, e ele acabou se tornando uma lembrança pálida em meio a uma sinfonia de sabores vibrantes.
Então, quando a Caja Mágica de Astrid chegou, confesso que estava cético. Mas a enorme caixa de madeira com gavetinhas contendo lindos bombons mudou tudo. Cada pedaço era um pequeno universo, e o bombom de Negroni foi um presente inesperado. Como amante do drink, senti que ele havia sido feito sob medida para mim. Já a minha esposa queria levar a caixa inteira pra casa. Foi o final perfeito, redentor e surpreendente.
Astrid y Gastón: Reflexões entre História e Futuro
Deixar o Astrid y Gastón é como sair de uma peça de teatro inesquecível. Você não leva apenas a memória dos pratos, mas a sensação de ter participado de algo maior. A Casa Moreyra não é só um restaurante; é um manifesto da cultura peruana, um lugar onde tradição e inovação se encontram de mãos dadas.
Sim, a experiência tem seu preço, tem que estar bem preparado para vivê-la. Mas é mais do que um jantar – é uma aula, uma viagem, uma celebração. E, para quem ama a gastronomia, é um daqueles momentos que você guarda na memória como um marco, uma referência.
Porque, no fim, o que Gastón Acurio e Astrid Gutsche oferecem vai além do prato: eles contam histórias que ficam com você muito tempo depois de a última garfada ter sido dada.
Leia também: Sabores de Salvador 2024: Premia a excelência e a diversidade da gastronomia baiana
Siga o Muito Gourmet no Instagram e fique por dentro de todas as novidades gastronômicas de Salvador!