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O futuro do vinho, em tempos de rótulos premiados e tendências de mercado que mudam a cada safra, parece apontar para um movimento que vem ganhando força nas taças (e nos corações) de quem acompanha a cena vitivinícola sul-americana: o retorno às origens.
Na nova coluna para o Muito Gourmet, a sommelière Carol Souzah reflete sobre o impacto simbólico e sensorial que os vinhos de mínima intervenção, uvas autóctones e métodos sustentáveis estão provocando.
A inspiração veio após o evento Sip of South America 2025, em Nova York, onde o Brasil, ao lado de outros países da região, brilhou com autenticidade e diversidade.
Com sua escrita sempre sensível e provocativa, Carol convida à escuta e ao desapego de preconceitos. Porque, como ela mesma diz: “o futuro do vinho sul-americano está sendo escrito com mais coragem e com um olhar generoso para o passado”.

O passado é o futuro do vinho sul-americano
Na última semana, me emocionei ao ler sobre o evento Sip of South America 2025, promovido pela Wine Enthusiast em Nova York. Pela primeira vez, o Brasil marcou presença com espumantes elaborados pelo método tradicional e Syrahs de Minas Gerais que surpreenderam sommeliers americanos. Mas o que mais me tocou foi perceber como o vinho sul-americano está, de fato, vivendo um ponto de virada, e, como esse movimento ecoa com meu próprio caminho nos últimos anos.
Amo e bebo todos os estilos de vinho, mas foi nos vinhos sustentáveis e na descoberta de novas uvas que minha paixão realmente se aprofundou. Lembro da alegria ao abrir uma garrafa de Criolla Chica ou Pedro Gimenez da Argentina, ou da uva País do Chile, e contar aos clientes que aquelas castas, por muito tempo vistas como ‘menores’ e quase esquecidas, hoje são símbolo de um resgate identitário. Ou ainda, de servir um Lorena brasileiro (uva desenvolvida pela Embrapa) e ver o espanto diante do frescor e personalidade que aquela taça entrega.
Essa nova onda não é moda passageira. É um retorno às raízes. Um gesto de resistência às mudanças climáticas, mas também um reposicionamento narrativo: contar as histórias das famílias produtoras, mostrar a pluralidade da América do Sul, desafiar estereótipos que nos reduziram a apenas Malbecs parrudos ou Carménères excessivamente amadeirados.
Outro fator impossível de ignorar é como o resgate das uvas autóctones e crioulas acontece justamente quando os vinhos naturais e de mínima intervenção voltam a ocupar espaço e prestígio mundo afora. Mas, enquanto ganham força, ainda enfrentam preconceitos — tanto no paladar quanto na escuta. Muita gente torce o nariz, repete chavões, diz que “não gosta”, que “tem cheiro estranho”, que “não parece vinho”. Quase sempre, de quem nunca experimentou um vinho natural bem feito.
O mais curioso? Esses vinhos, que muitos tratam como “modinha” ou “alternativos”, são justamente os mais antigos, e, paradoxalmente, os mais modernos. Eles falam de ancestralidade, de identidade e também de futuro. Talvez por isso provoquem tanto incômodo: colocam em xeque certezas enraizadas.
Ainda assim, a resistência é tanta que já presenciei situações curiosas: clientes que elogiaram um vinho, mas, ao saber que era biodinâmico, quiseram devolver. Isso aconteceu com uma garrafa da Albert Bichot, tradicional casa da Borgonha que hoje conduz grande parte de seus vinhedos de forma orgânica e biodinâmica.
Na América do Sul, o cenário é semelhante. Muita gente ama os vinhos da De Martino ou da vinícola Emiliana (Chile) — talvez a vinícola orgânica mais conhecida do continente, com rótulos como o Adobe Reserva — sem imaginar que são 100% orgânicos. No Uruguai, a Garzón segue o mesmo caminho. Em Portugal, a Quinta de Covela e a Niepoort são bons exemplos dessa transição.
Ou seja: talvez a gente já esteja bebendo vinhos naturais sem saber (e adorando).
Falta menos preconceito e mais curiosidade. Menos rejeição e mais escuta. Porque vinho é encontro. E encontro exige abertura.
O que hoje parece novo, na verdade, é retorno. Sempre digo que o passado é o futuro do vinho. Antes da industrialização, era assim que se fazia: sem agrotóxicos, sem aditivos, com fermentações espontâneas e total conexão com o terroir.
Ver tantos estilos, vinificações e uvas ganhando espaço em um evento como o Sip of South America é potente. Ter nossos vinhos reconhecidos lá fora é colocar a América do Sul no mapa mas com nossa identidade completa.
Daniella Lauricella, Fernando Navas e Oscar Garcia Moncada falaram com clareza sobre esse movimento de retorno às uvas autóctones, às vinhas antigas, à expressão viva do terroir. A jornalista Jesica Vargas lembrou de regiões como Itata, Maule e Limarí, que estão resgatando castas patrimoniais e produzindo vinhos vibrantes e vivos.
Que bom ver espumantes brasileiros sendo aplaudidos fora do país. Que bom ver as Syrahs mineiras surpreendendo em Nova York. Que bom ver o sul-americano assumindo, com coragem, sua pluralidade.
O futuro do vinho sul-americano está sendo escrito com mais coragem, mais autenticidade e mais escuta. E que bom que, nesse caminho, a gente esteja voltando às origens.
Porque, no fim das contas, é no que é simples, verdadeiro e vivo que mora a beleza da taça.

Sobre Linha Editorial e a Carol Souzah
Carol Souzah é sommelière, jornalista e nova colunista do Muito Gourmet.
A sommelière abordará inovações no mundo dos vinhos, curiosidades, harmonizações, aspectos socioeconômicos, sustentabilidade, ética na produção e muitas dicas.
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