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Em novembro, mês da Consciência Negra, a coluna de Carol Souzah nos leva por um caminho raro na enogastronomia: o resgate da ancestralidade africana na história do vinho. Com olhar crítico e profundo, Carol questiona o apagamento histórico que transformou o vinho em sinônimo de tradição europeia e ilumina as raízes milenares da vinificação em Kemet, o antigo Egito.
Neste texto, ela convoca o leitor a repensar o que sabemos, ou o que nunca nos contaram, sobre quem fermentou as primeiras uvas, quem desenhou os rituais e técnicas que hoje chamamos de tradição.
Uma aula sobre pertencimento, memória e verdade, embasada em fontes arqueológicas e intelectuais afro-diaspóricas.
O vinho antes da Europa, a memória africana antes do apagamento
De quem é, afinal, a verdadeira história do vinho? E por que insistimos em olhar apenas para a Europa quando falamos de origem e tradição?
É quase irônico que, enquanto grande parte da Europa ainda organizava aldeias, a África já transformava uva em vinho com método, ciência e espiritualidade. A narrativa ocidentalizada apagou essa presença, como se o vinho fosse exclusivamente europeu. Fanon lembrava que a colonização instala o esquecimento, e Sueli Carneiro chama isso de epistemicídio, o apagamento deliberado do saber de um povo. O vinho, por mais romântico que pareça, também foi atravessado por esse apagamento.
As evidências arqueológicas mostram que por volta de 3000 a.C. o Egito antigo, Kemet, já produzia vinhos com um refinamento que impressiona pesquisadores até hoje. Em Abydos, Hierakonpolis e Tebas foram encontradas ânforas com registros de safra e procedência, além de pinturas que detalham colheita, prensagem, fermentação e armazenamento. Produziam-se tintos, brancos e rosés com técnica organizada e avançada para a época. Não era acaso, era conhecimento.
A África no mapa das primeiras vinificações do mundo
O consenso arqueológico aponta que os berços mais antigos do vinho se espalham por regiões que hoje correspondem à Geórgia, Armênia, Turquia, Síria, Irã e Líbano, territórios do Cáucaso e do Levante. E apontam também o Egito. A África não ocupa um lugar secundário nessa linha do tempo, ocupa um lugar essencial. A Geórgia possui os vestígios mais antigos, o Líbano e a Síria desenvolveram circulação e comércio, e Kemet se destaca pela sofisticação dos métodos, pela organização técnica e pelo papel do vinho como elemento ritual, político e espiritual.
Durante minha formação como sommelière, algo sempre me inquieta. Nos cursos que fiz, sejam eles nacionais ou internacionais, aprendi, sem grande profundidade, sobre o Cáucaso e o Levante. Já as tradições europeias são apresentadas em riqueza de detalhes, inclusive com mitologias e curiosidades, mas quase não ouvi sobre a África antiga, Kemet, como uma das pioneiras na vinificação. Quando mencionada, a abordagem se limitava aos vinhos contemporâneos, sem apresentar a contribuição milenar de Kemet. Essa ausência não é uma falha neutra, é resultado do mesmo epistemicídio que decide quem pode ser reconhecido como origem.
Por isso, aqui em Salvador, faço questão de citar o papel da África em todos os meus cursos e em boa parte das degustações em que ensino a história do vinho. Acredito que o saber precisa ser completo. Muita gente que já passou por aulas comigo sabe disso. Recuperar essa história é recuperar pertencimento, memória e verdade.
Então o que fazemos com isso agora?
Talvez seja simples. Passamos a beber sabendo. Reconhecemos a ancestralidade que sustenta a taça. Criamos espaço para que profissionais negros ocupem seus lugares sem precisar provar legitimidade. Voltamos os olhos para a África que produz vinhos hoje e para a África que, muito antes disso, fermentou conhecimento, culto e vida.
Porque o vinho não é apenas tradição europeia.
É história global.
É memória compartilhada.
É herança africana também, sobretudo neste mês de novembro.
Dica da Somm: Referências que sustentam esta reflexão
- Ancient Wine, Patrick McGovern
Obra essencial sobre as origens arqueológicas do vinho e suas primeiras vinificações, incluindo Egito, Levante e Cáucaso. Base importante para compreender o papel técnico e cultural de Kemet na história do vinho. - A Incrível História do Vinho, Hugh Johnson e Jancis Robinson
Visão ampla e acessível sobre a evolução do vinho no mundo, útil para contextualizar a linha histórica global e entender como a narrativa europeia se tornou dominante. - Sueli Carneiro – Enegrecer o Feminismo e Escritos de uma Vida
Fundamental para compreender o conceito de epistemicídio e o apagamento de saberes africanos ao longo da história, tema central desta reflexão. - Frantz Fanon – Pele Negra, Máscaras Brancas
Obra-chave para entender os processos psicológicos e estruturais da colonização, especialmente a fabricação do esquecimento e da inferiorização cultural. Suas ideias iluminam a necessidade de recuperar narrativas silenciadas, como a da vinificação africana antiga.

Sobre Linha Editorial e a Carol Souzah
Carol Souzah é sommelière, jornalista e nova colunista do Muito Gourmet.
A sommelière abordará inovações no mundo dos vinhos, curiosidades, harmonizações, aspectos socioeconômicos, sustentabilidade, ética na produção e muitas dicas.
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