O que você verá na matéria:
- O sabor é uma construção social, e muitas vezes, uma construção elitista
- De cima para baixo: o paladar como hierarquia social
- Quando o pistache vira febre e a moela vira luxo
- Quando a validação chega, tudo muda, menos a origem
- Comer como ato de status (e não só de prazer)
- A pergunta que fica: o que você realmente gosta de comer?
Gosto popular? Você já reparou como, de tempos em tempos, certos ingredientes, pratos ou formas de preparo se tornam quase onipresentes nos cardápios? De uma hora pra outra, o pistache invade os doces, a taça de vinho “X” vira ritual obrigatório e cortes como a língua ou a moela saem do “marginalizado” para o “gourmet”.
Isso não acontece por acaso. É o resultado de uma engrenagem sutil, e poderosa, que define o que é bom gosto na gastronomia.
O que chamamos de “gosto” é, muitas vezes, uma narrativa imposta. Chefs renomados, críticos influentes, sommeliers e curadores de experiências gastronômicas determinam o que deve ser desejado. Essa elite, concentrada em restaurantes premiados, revistas especializadas e perfis de alto alcance nas redes sociais, atua como filtro e farol: decide o que é relevante e o que será descartado.
Essas decisões não apenas afetam os hábitos dos frequentadores de alta gastronomia, mas descem em cascata até chegar ao cotidiano. O prato reinterpretado por um chef francês, por exemplo, é traduzido em versões simplificadas que se espalham por bistrôs, food trucks, redes de delivery e, por fim, pelo gosto popular.
Quando o pistache vira febre e a moela vira luxo
Pegue o pistache como exemplo. Durante anos, esse ingrediente passou despercebido fora de nichos específicos. Mas bastou algumas confeitarias renomadas o colocarem no centro de doces ultrafotogênicos, com recheios cremosos, tons pastéis e embalagens de luxo, para que ele se tornasse onipresente: em ovos de Páscoa, panetones, cafés, croissants. A demanda não nasceu no gosto popular, mas na influência do topo.
Agora pense na moela, na língua, na lambreta. Ingredientes comuns à mesa de muitas famílias baianas e nordestinas, por vezes tratados como “comida de segunda”. Esses pratos resistiram por gerações, silenciosamente. Só depois que passaram pelo toque de chefs de renome, com espumas, coulis, redução de vinho, que começaram a ser valorizados.
Quando a validação chega, tudo muda, menos a origem
A história se repete com os ingredientes nativos do Brasil: cajuína, beiju, farinha de copioba. Produtos antes vistos como rurais, simples ou “pouco refinados” agora aparecem em menus degustação de casas estreladas, na forma de purês minimalistas, reduções ácidas e apresentações em cerâmica artesanal. De repente, ganham status. Mas o sabor? Ele sempre esteve lá.
A elite não inventa o sabor, ela valida. E o mercado responde imediatamente.
Comer como ato de status (e não só de prazer)
A alimentação deixou de ser apenas necessidade ou prazer. Tornou-se um instrumento de identidade, status e pertencimento. Ter “bom gosto” hoje é saber argumentar, conhecer harmonizações, seguir chefs premiados, frequentar lugares certos.
Comer, para muitos, virou performance. E nessa performance, o gosto é moldado para agradar mais aos outros do que ao próprio paladar.
A pergunta que fica: o que você realmente gosta de comer?
Se o seu gosto foi moldado, como saber o que é realmente seu? A provocação aqui é simples: questione as tendências.
Valorize o que sempre esteve à sua volta; ingredientes ancestrais, técnicas familiares, receitas de quintal.
E aqui no Muito Gourmet, sabemos que fazemos parte dessa estrutura.
Afinal, ao selecionar temas, destacar pratos ou contar histórias, exercemos influência, mesmo quando a intenção é apenas valorizar.
Por isso, escolhemos operar com consciência:
Queremos revelar sabores, não impor modas.
Queremos também provocar, não ditar o gosto popular.
Queremos servir a cultura, não moldá-la.
O verdadeiro sabor não precisa de rótulo.
Só de respeito.
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