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Salvador: onde o bacalhau perde para o caruru na Semana Santa

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Quando o calendário anuncia a chegada da Semana Santa, os programas de televisão se apressam em exibir receitas de bacalhau, ovos de chocolate ganham destaque nos supermercados e o Brasil parece se alinhar numa mesma tradição pascal. Mas em Salvador, como sempre, tudo tem um sabor diferente.

Aqui, o que chega à mesa na Sexta-feira Santa não é o peixe nórdico nem a tradição importada — é o caruru, o azeite de dendê e a memória viva de um povo que transforma comida em cultura. Nesta crônica deliciosa e repleta de baianidade, conheça por que, na capital baiana, o almoço de Sexta-feira Santa é um verdadeiro banquete ancestral, com raízes africanas, espírito coletivo e alma profundamente soteropolitana.

Alguém me avisou

Semana Santa chegando e Ana Maria Braga já está prontíssima na televisão para ensinar sete receitas de bacalhau para o almoço de Páscoa em família. Querendo, você aprende com ela a fazer aquela receita que todo mundo vai elogiar e comer junto no feriado. Certo? Onde? Não te avisaram? A mim sim — e eu já sei que, em Salvador, mais uma vez, é tudo diferente. E se você decidir ouvir a Globo por aqui, vai ser bem esquisito.

Na Sexta-feira Santa em Salvador, a estrela do cardápio não é o bacalhau. E, convenhamos, nem o ovo de Páscoa — que por aqui vira quase lembrancinha, ficando atrás até da sobremesa. Como tudo nesta cidade é único, o que se come nesse dia sagrado é exclusivo e só se encontra aqui. Aquele peixe norueguês, branquelo, salgado, seco e sem cabeça, vindo de longe, definitivamente não é o protagonista da mesa. E isso pode causar surpresa para muita gente.

É que, em se tratando de Salvador, cada pedacinho da vida cotidiana, cada festa, cada forma de fazer, pensar e comer carrega um tanto de singularidade. A originalidade está em tudo — e, na Sexta-feira Santa, ela brilha com força.

Nesse dia, a gastronomia baiana revela, mais uma vez, a potência do seu patrimônio imaterial. E veja: a Páscoa é coisa séria por aqui. Herdada do catolicismo colonial português, essa tradição ainda influencia os modos de vida locais e impõe suas regras alimentares. A mais conhecida? Nada de carne vermelha na Sexta-feira Santa. A norma é observada por praticamente todos. Churrasco, nem pensar. Rodízio de carnes? Vazios. Até o açougueiro vai estranhar se você pedir um chã de dentro nessa data.

Mas é na força da cultura afro-brasileira que a Sexta-feira Santa ganha alma em Salvador. Rica, bela e ancestral, é ela quem dá o tom da festa e transforma qualquer refeição em rito. É por sua presença marcante que as famílias se reúnem ao redor da mesa para saborear um verdadeiro banquete dos deuses do Olimpo baiano: o belo, caldoso e saboroso caruru.

Nos dias que antecedem a Sexta-feira, é tradição acompanhar pela televisão o preço do quiabo e do camarão seco — e, claro, reclamar deles. Também é costume ir à feira, quebrar a pontinha do quiabo (pra ver se está no ponto!) e levar uma bronca do feirante. Afinal, é assim que manda a tradição. Época também de verificar se tem azeite de dendê em casa — e não o de oliva, mas o legítimo, com a borra decantada no fundo e aquele dourado de raio de sol engarrafado.

Sim, na cidade, o bacalhau passa longe do protagonismo. O que todo mundo quer mesmo é um caruru completo, com vatapá, xinxim de galinha (não de frango), arroz, feijão e, claro, farofa. Pimenta? Também pode, mas aí é gosto pessoal. E para abrir o apetite, acarajé e abará de entrada, como tira-gosto, garantindo sua presença desde o primeiro instante.

É assim: na Bahia, nada se faz sem uma tradição própria. Tudo aqui tem história, tem alma, tem sabor. Por isso, se te chamarem para um caruru de Sexta-feira Santa, lembre-se de vir de lá pequenininho e pisar nesse chão devagarzinho. Fica aí o aviso. Assim eu te garanto: você vai ser recebido com um almoço de Sexta-feira Santa como não se vê igual em nenhum outro canto do mundo.

— P.C.L

bacalhau e caruru

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