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O professor Tibério Alfredo Silva retorna em seu segundo texto para discutir a disputa entre o bem-casado e o bolo de noiva pelo posto de ícone doce das festas de casamento.
Enquanto o bolo tem o histórico de ser objeto de ostentação e de disputa pela primeira fatia, o bem-casado é conhecido por sua simplicidade e pelo simbolismo de união e sorte que representa.
Mas afinal, quem ganhará essa guerra dos doces?
O bem-casado e a guerra dos doces
Não sei se maio ainda é considerado o mês das noivas.
Creio que esta fama ficou no passado.
Mas não importa; se tem casamento, tem festa. Se tem festa tem gastronomia e tem docinhos.
Um destes docinhos pode ser descrito da seguinte forma:
Iguaria conhecidíssima no universo da confeitaria, de casquinha doce que derrete na boca, cobrindo bem torneados medalhões de delicada massa microaerada, que guardam no seu interior recheio do mais fino doce de leite.
Estou falando do tradicional, simbólico e delicioso “bem-casado”.
O docinho disputa com o “bolo de noiva” a intenção de ser o ícone doce das festas de casamento.
O bolo, do alto da histórica posição de objeto de ostentação, se vangloria da sua verticalidade trabalhada no açúcar, olhando com superioridade os doces e bombons menores espalhados pela mesa como se soldados fossem protegendo o imperador bolo.
Afinal de contas a extravagante pâtisserie, aos moldes da estética das pièces montées do Chef Careme (1783-1833) sempre frequentaram as melhores bodas da aristocracia francesa desde o Renascentismo.
Em tempos atuais, não é raro ver em álbuns de fotografia de casamento a famosa pose ao lado do imperador doce.
E mais: o bolo, em outras ocasiões, é protagonista da (às vezes) constrangedora situação de “para quem vai a primeira fatia? ” E o pavor adolescente quando alguém puxa o “com quem será…? ”
Sereno, nosso doce microaerado não causa desconforto a ninguém.
Ao longe, o pequenino docinho aguarda a sua vez de brilhar na festa. Sua boa hora há de chegar, “bem-casado”.
A origem do “bem-casado” é um tanto nebulosa, mas certamente ele chegou a terras brasileiras através da colonização portuguesa, inspirado no doce ainda hoje chamado “casadinho”.
Fontes diversas apontam a origem do casadinho português no milenar alfajor árabe e semelhanças com o macaron francês não passam despercebidas.
Datações diversas levam considerar a introdução do casadinho como doce tradicional de festas de casamento a partir do século XVIII. No Brasil, a receita sofreu adaptações e adotou o pão-de-ló como estruturador da iguaria.
A tradição, muito bem aceita no Brasil, é cheia de simbolismos e interpretações.
O “bem-casado” representa duas partes que se unem e são seladas pela cumplicidade e respeito mútuo.
Diz a tradição que, para chamar a sorte e a felicidade da união, deverá ser distribuído um “bem-casado” para cada convidado.
Atenção, o costume é somente um para cada um!
Reciprocamente, todo aquele que saborear o doce estará sendo abençoado com a mesma sorte e a felicidade dedicada aos noivos.
Em busca de uma justificativa religiosa, há aqueles que argumentam que o “bem-casado” simboliza as palavras da Bíblia, em Gênesis, sobre quando Deus criou primeiro o homem e depois a mulher; ambos predestinados a se unirem e tornarem-se um só.
A imagem é bem interessante, porque realmente, depois de colados com a doçura do recheio, representando o amor, não é fácil separar as partes sem que elas se façam em pedaços.
Na luta pelo estrelato na festa de casamento, nosso “bem-casado” vai usar as mesmas armas de sedução que seu agigantado rival: o apelo visual.
Como o docinho, nem de longe, chega à exuberância do bolo; a solução foi vesti-lo (o docinho) finamente. Desta forma, o doce simples, de ingredientes simples, de formato acanhado, ganha, tal como a Cinderela, uma roupagem de gala.
Esmeradamente embalado, onde não há freios para a imaginação e criatividade, os “bem-casados” se destacam pela apresentação. Agregam valor quando contextualizados com a decoração da festa; merecem detalhes de personalização que os tornam ÚNICOS entre os doces do festim.
E agora vem o toque final para deixar o bolo derrotado na guerra dos doces: a exclusividade!
O bolo já destruído pela implacável espátula nas mãos da noiva, auxiliada pela arte cisória questionável de uma madrinha desajeitada, vai se render ao “bem-casado”.
Fartem-se do bolo, comam à vontade, mas do “bem-casado” você só terá um! Assim diz a tradição.
A popularidade do doce de casamento é tanta que as garras do mercado já lhe atribuíram filhotes. Doceiras enriquecem seus menus com “bem-aprovado”, “bem-nascidos”, “bem-formados”, “bem-jovens” e até “bem-sucedidos”; abandonando, tristemente, o sentido histórico do docinho representativo da união.
Mas, sem macular a tradição, incursões de modernização estão sendo feitas no secular “bem-casado”.
Na onda da goumertização (muitas vezes descabidas, exageradas e fora de contexto) o amor do “bem-casado” – o doce de leite – não ficou sem receber sua pitada de século XXI e variações e experimentações gastronômicas, sob o famigerado nome de “releitura”, modificam o tradicional recheio.
Hoje encontramos elegantes “bem-casados” com recheio de ganaches sofisticadas, cremes muito bem elaborados de maçã e canela, por exemplo; mousses variadas; recheio de brigadeiro; preparos simplificados com leite condensado e, atendendo a demanda de mercado: opções industrializadas de creme de avelãs.
Força aí “bem-casado” de DOCE DE LEITE, você ainda continua firme nas bodas e na memória gustativa dos brasileiros.
Entrego aqui minha visão romantizada e tradicional do “bem-casado”. Lamento muito que a tradição do doce venha perdendo espaço para a banalização do quitute e o simbolismo da união se derrete como açúcar na água.
Observo que em alguns eventos o “bem-casado” virou mais um docinho perdido à mesa, disponível aos montes no tablado açucarado ao estilo “mais do mesmo”.
A oferta superdimensionada destrói um dos charmes do “bem-casado” que é a singularidade. A valorização pela escassez deixa de ser observada e com isso a simbologia e a tradição se esvai a cada boda.
Uma pena!
- Leia também: Uma crônica do filme O Menu: Chef Slowik.
Qual a origem do bem-casado?
A origem do bem-casado é incerta, mas acredita-se que tenha sido trazido para o Brasil pelos portugueses e sofrido adaptações ao longo dos anos.
Qual o simbolismo do bem-casado?
O bem-casado representa duas partes que se unem e são seladas pela cumplicidade e respeito mútuo. O costume é que seja distribuído um bem-casado para cada convidado como forma de chamar a sorte e a felicidade da união.
Como o bem-casado se destaca em relação aos outros doces da festa?
O bem-casado se destaca pela apresentação, podendo ser personalizado e contextualizado com a decoração da festa. Seu apelo visual é uma de suas armas de sedução para disputar o posto de ícone doce das festas de casamento.
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